28 de out. de 2020

O Processo – Franz Kafka

O Processo


Entre as leituras de Kafka é unânime o insight que diz respeito à gigantesca amplitude de interpretações que recebe a sua obra, mesmo essa se tratando de um trabalho relativamente enxuto, com pouco mais de 40 escritos conhecidos – número esse que poderia ser ainda menor se não fosse por Max Brot, amigo testamenteiro que não obedeceu ao último desejo do autor de destruir parte do trabalho original.


E, falando em ampla interpretação, em O Processo não poderia ser diferente. Ainda que se tratasse de um romance acabado, seria uma tarefa impensável atribuir uma única visão à trágica narrativa do protagonista Josef K. dada a quantidade de situações em que o autor vai de encontro às mais variadas perspectivas possíveis através de sua forma maestra de apresentar a futilidade dos cenários comuns. 


Talvez resida justamente aí a genialidade de Kafka; futilizar as já fúteis trivialidades das quais todos estamos submetidos cotidianamente. Mas, como diria o ilustre Professor Rodrigo Gurgel “não devemos procurar uma solução definitiva para o Problema Kafka; esse é um problema de contínua análise”. Assim, as reflexões que ora apresento, indubitavelmente carecem de revisões posteriores (até o momento em que organizo tais notas, pude conferir apenas A Metamorfose e O Processo).


A seguir, vejamos então algumas notas acerca de trechos destacados de O Processo.


“Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal.”


Já nas primeiras linhas, a vida de Josef K., um gerente de banco na casa dos trinta anos, é posta ao avesso ao ser preso numa manhã por dois oficiais tão identificáveis quanto o motivo de sua prisão. O caso fica ainda mais obscuro quando K. não é levado pelos oficiais para uma prisão qualquer; a sua vida se torna uma prisão em si mesma. A partir daí o desenrolar desse processo juntamente com a incapacidade de K. de provar a sua inocência, irão consumir o protagonista até sua autodestruição. Uma vez que cada atividade cotidiana e social estará submetida ao processo, como se todos fizessem parte de um grande tribunal, a vida do acusado perde qualquer propósito pois não passa agora de um terrível labirinto burocrático. 


K. tinha sido avisado por telefone de que no domingo seguinte realizar-se-ia um pequeno interrogatório no âmbito do seu caso. Observaram-lhe que tais interrogatórios se sucederiam regularmente, ou mesmo todas as semanas, pelo menos muito frequentemente.


Em sua primeira defesa diante da suposta audiência de instrução, sem ainda ter dado conta de sua inferioridade perante o processo, K. faz pouco caso do procedimento enfrentado:


A sua pergunta, Senhor Juiz de Instrução, a inquirir se sou pintor de prédios... aliás, o senhor não me perguntou nada, atirou-me esta declaração... é reveladora do conjunto do processo intentado contra mim. Pode objectar que não se trata de modo nenhum de um processo judicial, e tem inteiramente razão, porque não se trata de um processo judicial, salvo se eu lhe reconhecer essa qualidade. Ora, reconheço-a neste instante, por compaixão, por assim dizer.


Em seguida K. até reconhece a imponência do judiciário, mas não sem motivo. Uma critica é elaborada ao sistema inquisidor e seus funcionários:


(...) não resta qualquer dúvida de que por detrás de todos os procedimentos deste tribunal, portanto no meu caso preciso, por detrás da detenção e da presente instrução, dissimula-se uma vasta organização. Uma organização que não só emprega guardas corruptos, inspectores estúpidos e juízes de instrução modestos no melhor dos casos, mas sustenta além disso uma alta magistratura e uma magistratura suprema, com o seu incontornável cortejo de oficiais de diligências, de escrivães, de polícias e de outros auxiliares, talvez mesmo os seus carrascos, a palavra não me mete medo. E qual é o sentido desta vasta organização, senhores? Consiste em fazer prender pessoas inocentes e em intentar contra elas processos judiciais loucos e, na maior parte das vezes, como no meu caso, sem resultado.


Ao perceber inutilidade da defesa até então empregada, K. conclui: 


É então isso! – exclamou K. erguendo os braços ao céu, porque era preciso espaço para esta súbita descoberta. – Vós sois todos funcionários, pelo que vejo, vós sois o bando de indivíduos corruptos que eu vilipendiei; vós acorrestes para me escutar e me espiar, fingistes formar partidos, e um deles aplaudiu-me para me pôr à prova; queríeis saber como enganar os inocentes. Ora bem, não viestes aqui para nada, espero; quer vos tenhais divertido a ver alguém esperar que tomásseis a defesa de um inocente... deixa-me em paz, ou bato-te – lançou K. à cara de um velho trémulo que se havia aproximado de mais –, quer pelo contrário tenhais realmente aprendido alguma coisa. E com isto, desejo-vos boa sorte no exercício do vosso ofício. 


São vários os momentos em que Kafka deixa bem claro que a vida de K. não seria mais a mesma, assim como a de todos aqueles que aguardam o desenrolar de um processo. Uma decisão, um desfecho definitivo é tudo que se espera. Mas de fato, entre despachos e decisões interlocutórias, passam-se dias, meses e anos sem que nada se resolva. A eternidade parece coisa pequena diante do tempo forense. Em um trecho:


A ideia do processo já não o largava. Perguntava muitas vezes a si próprio se não seria bom preparar uma defesa por escrito e apresentá-la no tribunal. Queria fazer nela uma breve história da sua vida e, para cada facto mais significativo, explicar os motivos que haviam determinado os seus actos, em que medida este modo de agir lhe parecia retrospectivamente louvável ou condenável, e por fim que motivos podia invocar numa ou noutra hipótese. As vantagens de semelhante defesa sobre a que o advogado apresentava não ofereciam dúvidas. Para mais, se esse advogado não fosse irrepreensível. K. ignorava aliás que diligências o advogado estava a efectuar; não seria grande coisa, em todo o caso: havia já um mês que não o convocava, e em nenhuma das anteriores conversas K. tivera o sentimento de que este homem pudesse fazer alguma coisa por si.


É importante frisar o fato de que Kafka estudou Direito e trabalhou para uma companhia de seguros e para um instituto onde era responsável pela investigação e avaliação de compensação por danos pessoais para trabalhadores industriais, pois tais experiências em muito influenciaram a escrita de O Processo. Em alguns trechos é perceptível as observações diretas acerca do contato do autor com a burocracia judiciária, do qual ele detestava por lhe consumir tempo que poderia ser dedicado à escrita. Exemplo:


Segue-se que os documentos conservados no tribunal, e sobretudo a peça de acusação, são inacessíveis ao acusado e à sua defesa; por isso é que em geral não se sabe, ou pelo menos exactamente, sobre o que o primeiro requerimento deve tratar, de tal modo que só por efeito do acaso ele pode conter alguma coisa importante para o processo. É só mais tarde que se fica em condições de elaborar requerimentos com uma real pertinência e bem argumentados, quando durante as audições do acusado o pormenor dos artigos de acusação e o seu fundamento aparecem com mais nitidez, ou se deixam adivinhar. Nestas circunstâncias, a defesa encontra-se claramente numa situação muito desvantajosa e difícil. Mas isto é também propositado. Porque, na realidade, a lei não autoriza a defesa, tolera-a simplesmente; e a questão de saber se a alínea em causa deve ser interpretada pelo menos no sentido da tolerância, é ela própria controversa. Por isso não existem, estritamente falando, advogados da defesa que sejam reconhecidos pelo tribunal; os que intervêm perante este tribunal não passam todos, no fundo, de advogados ocultos.


E mais um outro:


De facto, o acusado não tem acesso aos processos do tribunal, e é muito difícil determinar a partir dos interrogatórios sobre que documentos eles assentam, particularmente para um acusado intimidado e distraído por toda a espécie de preocupações. Ora, é aqui que a defesa intervém. Em geral, os advogados não têm o direito de estar presentes nos interrogatórios; por isso, é depois do interrogatório, e se possível ao sair da sala de audiências, que eles devem sondar o acusado sobre o interrogatório, e nesses relatos já muito esbatidos encontrar elementos úteis à defesa. Mas isto não é o essencial, porque não se fica a saber grande coisa desta maneira, mesmo se, aqui como noutro lado qualquer, um homem hábil perceba mais do que os outros. O mais importante, apesar de tudo, são as relações pessoais do advogado: é o que determina principalmente o valor da defesa. Ora, pela sua experiência pessoal, K. tinha agora compreendido que a organização do tribunal, nos escalões inferiores, não é perfeita, inclui funcionários desleais e corruptos, o que provoca de certo modo falhas no sistema fechado do tribunal. E é por aí que se infiltra a maioria dos advogados, é aí que se suborna e que se escuta às portas; até houve, pelo menos nos primeiros tempos, casos de roubos de documentos. É indesmentível que desta forma se obtêm a curto prazo resultados espantosamente favoráveis ao acusado, o que dá a estes pequenos advogados matéria para se pavonearem e atraírem novos clientes; mas para o desenrolar ulterior do processo, isso não significa nada, ou nada de bom. Verdadeiro valor têm só as relações pessoais honestas, e isto com os altos funcionários, ou seja, claro, os altos funcionários dos escalões inferiores. É apenas por seu intermédio que se torna possível influenciar, por certo de uma forma ao princípio imperceptível, mas depois cada vez mais nítida, o desenrolar do processo. Claro que só um pequeno número de advogados o consegue (...).


Sobre o papel do advogado e o exercício da advocacia, Kafka observa:


Aqui percebia-se bem o inconveniente de uma justiça que estipula de início a inquirição secreta. Os funcionários não têm nenhum contacto com a população, estão habilitados para os processos ordinários, de uma importância corrente: um tal processo segue o seu curso quase por si próprio e apenas pede para ser ativado de vez em quando; mas perante os casos muito simples e os casos particularmente muito difíceis, encontram-se muitas vezes desamparados; confinados constantemente, dia e noite, na sua lei, não possuem o sentido das relações humanas, e isso falta-lhes cruelmente nos casos deste género. É então que vão procurar o advogado e pedir-lhe conselho, acompanhados por um oficial de diligências que transporta estes documentos habitualmente muito confidenciais. Nesta janela, puderam ver-se numerosos cavalheiros que ninguém esperaria aí encontrar, lançando à rua um olhar desolado, ao passo que no seu gabinete o advogado estudava as peças para lhes poder dar um bom conselho. Era aliás nestas ocasiões que se podia verificar a seriedade extrema com que estes senhores exercem a sua profissão, e o grande desespero em que os precipitam obstáculos que a sua natureza não lhes permite ultrapassar.


Sobre o interminável andamento processual:


Por certo, há horas sombrias, como todos já experimentaram, em que se julga nada ter realizado, em que se tem a impressão de que só os processos destinados desde o princípio a um desenlace favorável, terminam bem, mesmo sem ajuda exterior, ao passo que os outros perderam apesar de todas as diligências, de todas as fadigas, de todos os pequenos êxitos aparentes com que tanto se regozijavam. Então, nesses momentos, nada mais parece certo de que os processos, por si mesmos bem encaminhados, não foram desviados do seu curso senão por uma intervenção exterior.

Isto também é uma forma de confiança em si, mas é tudo o que então resta. Os advogados são particularmente expostos a este género de crises – porque são simples crises, claro, nada mais – quando de súbito lhes retiram um processo que eles conduziram tão longe e de maneira satisfatória. É sem dúvida o pior que pode suceder a um advogado. Não que seja o acusado que lhe retira o processo, isso nunca acontece, creio eu; um acusado, uma vez que tomou um advogado, deve conservá-lo sempre, seja o que for que suceda. Como poderia, com efeito, ele aguentar-se sozinho, depois de haver recorrido à sua assistência? Isto nunca sucede; mas acontece por vezes que o processo toma uma direcção em que o advogado já não tem o direito de acompanhá-lo. O advogado limita-se a ver ser-lhe retirado o processo, o acusado e tudo o resto; então, mesmo as melhores relações com os funcionários já não podem servir para nada, porque eles próprios não estão informados. O processo acaba por entrar numa fase onde é doravante impossível trazer qualquer ajuda, entre as mãos de tribunais inacessíveis e onde o advogado nem sequer pode contactar com o acusado. Regressamos então um belo dia a casa para achar em cima da secretária a montanha de requerimentos que foram redigidos com muito zelo e formando as mais belas esperanças para este processo: como não podem ser transmitidos neste novo estádio do processo, foram devolvidos; não são mais do que pedaços de papel. Dito isto, o processo não está perdido, de modo nenhum; pelo menos não há nenhuma razão decisiva para supô-lo; simplesmente não se sabe mais nada do processo, e dele não se terá mais nenhuma notícia.


Diante da Lei


Diante da Lei

Na catedral (um dos capítulos finais) K. confessa toda sua resignação com o processo perante o capelão das prisões que ali o aguardava. Para K., apesar de ter tido muito trabalho, nenhum resultado foi obtido até então. E se antes julgava que tudo acabaria bem, agora duvida de si próprio, perdendo as esperanças quanto ao desfecho do processo. O capelão, por sua vez, assim apresenta a parábola Diante da Lei:


Diante da Lei há um porteiro. Um homem do campo chega junto desse porteiro e pede para entrar. Mas o porteiro declara que por agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem reflecte, depois pergunta se então poderá entrar mais tarde. «É possível», diz o porteiro, «mas não agora.» Como a porta da Lei estava como sempre aberta, o porteiro afasta-se e o homem debruça-se para olhar para o interior, através da porta. Ao ver isto, o porteiro começa a rir e diz: «Se te atrai assim tanto, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Mas cuidado: eu sou poderoso. E não passo do último de todos os porteiros. Porque, de sala para sala, há porteiros, cada um mais poderoso do que o anterior. Mesmo a mim, a simples vista do terceiro já se torna insuportável.» O homem do campo não contava com semelhantes dificuldades; pensa ele que, todavia, a lei deve ser sempre acessível e para todos, mas agora que examina de mais perto o porteiro no seu manto de peles, com o grande nariz pontiagudo, a longa e fina barba negra à tártaro, acaba por decidir que prefere aguardar que lhe dêem licença para entrar. O porteiro dá-lhe uma banqueta e fá-lo sentar ao lado da porta. Fica ali sentado durante dias e anos. Faz numerosas tentativas para que o deixem entrar e aborrece o porteiro com os seus pedidos. O porteiro submete-o por vezes a pequenos interrogatórios, faz-lhe perguntas sobre a sua terra e sobre muitas outras coisas, mas são perguntas que não testemunham qualquer simpatia, como as que fazem os grandes senhores; e a conclusão é sempre a mesma: ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que efectuou inúmeros preparativos para a sua viagem, utiliza tudo, seja qual for o valor, para corromper o porteiro. Este último aceita tudo, mas diz ao mesmo tempo: «Aceito só para que tu não fiques com a impressão de ter negligenciado fosse o que fosse.» Durante estes numerosos anos, o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros, e este, em primeiro lugar, parece-lhe ser o único obstáculo à sua entrada na Lei. Amaldiçoa a fatalidade, em voz alta durante os primeiros anos, depois envelhece e contenta-se em resmungar com os seus botões. Torna-se senil e como, durante todos estes anos passados a estudar o porteiro, também reparou nas pulgas na sua gola de peles, suplica mesmo às pulgas que o ajudem a fazer o porteiro mudar de opinião. Enfim, a vista diminui-lhe, e já não sabe se a obscuridade se espalha real mente em seu redor ou se são apenas os seus olhos que o enganam. Mas distingue na obscuridade uma luz que resplandece sem cessar através da entrada da Lei. Agora já não tem muito mais tempo de vida. Antes da sua morte, tudo o que viveu durante todo este tempo resume-se na sua mente numa pergunta que ainda não formulou ao porteiro. Faz-lhe sinal, porque já não consegue endireitar o corpo hirto. O porteiro é obrigado a inclinar-se para ele, porque as diferenças de altura modificaram-se muito em detrimento do velho: «Que queres tu saber ainda?», pergunta o porteiro, «tu és insaciável.» «Toda a gente se esforça por alcançar a lei», diz o homem, «como é que ninguém, excepto eu, solicitou a entrada durante todos estes anos?» O porteiro apercebe-se de que o fim do homem está próximo, e como é quase surdo, berra-lhe ao ouvido para se fazer ouvir. «Ninguém mais podia obter a autorização de entrar, porque esta entrada se destinava só a ti. Agora, vou-me embora e fecho-a.»


Mesmo não se tratando de uma obra acaba, a parábola oferece um possível desfecho para O Processo. Diante da Lei aparenta carregar consigo uma parte do significado de toda a tragédia enfrentada por K.  O protagonista já não sabe o que fazer para se livrar do processo. Espera provar sua inocência de uma forma desconhecida e já não dispõe de forças para encontrar as devidas respostas. Todas as tentativas foram em vão; o processo consumiu sua vida, assim como a do homem diante da lei. 


Como leitores, somos facilmente levados ao julgamento do quão fútil foram os esforços de K., e ao julgar dessa forma, estamos julgando nossos próprios esforços, pois estes também não escapam das futilidades cotidianas. Fazemos parte do tribunal tanto quanto os personagens de O Processo, e ao julgar as trivialidades de K. também nós condenamos. Eis o brilho da genialidade de Kafka. 


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As notas aqui utilizadas refletem diretamente aquilo que o autor do blog destaca da obra original durante a leitura da mesma, utilizando-se geralmente de citações diretas, indiretas e paráfrases, além de comentários pertinentes que podem ser retirados de outros trabalhos. As notas são criadas com o único intuito de fornecer um rápido acesso a consultas posteriores para estudo sobre o tema. Caso o leitor do blog tenha alguma dúvida ou gostaria de complementar algo, fique à vontade para deixar um comentário logo abaixo ou entre em contato mediante o instagram @waldeirmarques, ou email. 


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